Saturday, February 8, 2014

O meu sangue

Com as minhas dores posso eu bem. Ensaco-as, tal viola, para trás da porta e revisito-as quando tiver mesmo de ser. 

Mas não aguento a dor da mãe. Não suporto a tristeza pesada naqueles olhos azeitona absortos num amanhã vazio. Não aguento a confusão nas palavras que já se esqueceram do sentido que lhes acabaram de dar. As mãos trémulas de um tempo que se abateu sobre uma mulher linda, cedo demais, depressa demais. Preciso de mais dias, de mais anos, de empurrar a violência do que aí vem para a ficção de um sonho mau. Preciso que ela acorde a sorrir, que saiba onde está e porquê. Preciso que ela agarre a vida com mais força, ou que se agarre a mim para que a prenda eternamente a este mundo. Tenho de gritar com este Deus perverso que a tomou de ponta. Vou ameaçá-lo, vou fazê-lo desaparecer das fantasias de toda a gente. 

Não aguento a dor do pai. Acorrentado a uma vida que não escolheu e que lhe subtraiu a doçura incomensurável e a simples ousadia do poder querer. E carrega o fardo do mundo, para que as filhas nem cheguem a saber que existe. Golpes ensanguentados na cabeça como resultado de um acesso de fúria. Vejo-lhe a evasão nos olhos mudos dissiparem-se numa ideia intangível de misericórdia. 

Esta gente, este meu sangue, esta minha alma e corpo merece mais do que esta condenação que, nem a julgamento, teve direito.

Que me doa a mim. Que sovem antes o meu corpo, que me amputem os membros, um a um, se tiver de ser. Que me escolham a mim como mártir da crueza com que a vida nos diz que é assim mesmo. 
Dou-me à tortura, ao desespero, ao escuro sem fim, dou-me à morte.
Faço o que for preciso e mais o dobro.

Mas, por favor, deixem de violentar esta gente que é minha e que sou eu.

E como não tenho quem me faça à cortesia, estendo-lhes um abraço apertado esquecendo-me, para sempre, de o recolher.

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