Saturday, February 8, 2014

Corações

Se me pedissem que representasse a forma como a vejo, seria difícil encontrar as palavras. Procuraria associar imagens às sensações para não me perder em banalidades. E os lugares comuns e as banalidades estão a um distância cósmica de tudo o que ela é.

Quando penso nela não vejo um rosto. Há uma luz branca e morna que suplanta as distracções. Vejo uma madeixa de cabelo que se estende pelo ombro e que se pousa delicadamente sobre um pedaço de peito. E a razão pela qual eu sei disto é porque só me aquieto, assiduamente, no sereno do seu colo. A sua respiração de mãe, o bater compassado do sangue a dar entrada no coração, foram alinhados para embalar os filhos. E nesta redoma, tal como fazia com a minha mãe em pequena, deixo-me adormecer, enrolando os meus dedos no seu cabelo. E neste gesto perpetuo a ligação umbilical que me faz pertencer a algo maior do que eu. 

Pede-me que olhe em frente, diz-me que o futuro não é agora e que o passado se consumiu até à última gota. Pede-me que solte o cabelo, e que me deixe navegar pelas ondas dos meus caracóis. Quero muito mergulhar os pés na areia em brasa, deixar o sol abordar a superfície do meu corpo e largar-me ao destino que o vento decidir para mim. Mas há essa luta interior. Ergo espadas e escudo e, mesmo que os músculos me falhem, sei para onde tenho de ir. Quero muito que, no meio desse caminho atribulado, surja um trilho cheio de árvores tropicais e lagoas azuis que embeveça os meus sentidos, e com esse estado de estupefacção, o meu lugar e a minha missão se manifestem à minha frente.



E, volta e meia, sou assaltada com recordações que me agridem, como socos violentos no estômago. Há uma presença imaterial que me persegue disfarçadamente. Quando não estou à espera, toca-me no ombro e segreda-me ao ouvido murmúrios de verdades com as quais afincadamente combato. 

E tão facilmente o discurso atrapalhado de uma criança me liberta em gargalhadas, como o voo solitário de pássaro nocturno à minha janela me provoca uma precisão urgente de chorar. E nada disto tem tem grande justificação.


Lá terei de deixar os dias correr, uns atrás dos outros, como as gotas de água da chuva sobre uma estrada ensombrada e deserta, na esperança de que os pedaços deste coração estilhaçado se depositem, separadamente, em cada um deles. Um dia, livrar-me-ei desse orgão doente e débil. Nesse dia, vou à loja e compro um novo. E poderei enchê-lo novamente com coisas boas.

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