Saturday, February 22, 2014

Left turn

Contra todas as expectativas, há um dia em que a manhã te expulsa da cama sem que tenhas vontade de lá te abrigares novamente. A luz do dia arromba-te a casa e não a sentes como uma agressão. Reconheces novamente o cheiro que fica na terra depois da chuva e as variações do clima não condicionam as tuas decisões. 
A roupa que escolhes passa a ter cores e padrões e, devagarinho, começa a fazer sentido combinar umas peças com as outras.
A rádio assobia-te uma melodia triste e as lágrimas não te afligem aos olhos. Voltas a sentir fome e a redescobrir os sabores dos vários alimentos. Dormir passa a ser um favor que fazes ao corpo e não um milagre que suplicas à cabeça.
Sem saberes como, o espelho deixa de ser um reflexo do que tu és, mas apenas do que consegues ver. 
As tecnologias e as virtualidades vão cedendo espaço às pessoas e, logo logo, convences-te de que a tua existência não se extingue num estado offline. 
Nesse dia, decides percorrer o caminho mais longo e, em vez de chegares a casa, é a casa que chega até ti. E a partir daí, esse aconchego viverá dentro de ti, para onde quer que vás. Descobres que a liberdade se consegue em coisas tão simples como descontinuar um padrão. E cresces, com a desistência de interpretares as ironias, tanto como com o respeito pela multiplicidade de fenómenos que nos singularizam.
Esse é o dia em que finalmente tens coragem de fechar as portas atrás de ti e abrir as que estão à tua frente, em vez do inverso.




Wednesday, February 12, 2014

uninvited

Nem sempre que uma porta se fecha, se abre uma janela. 

Porque há portas que se nos fecham na fronte, cadeados que se impõem às fechaduras, emparedados que se erguem em tijolo para que todos os caminhos sejam irrepetíveis. E percebemos que se podemos ser rasurados de uma história sem que lhe seja alterado o sentido, é porque éramos a personagem secundária que ela tinha a mais.

Muitas vezes, o suposto é estacarmos do lado de fora, à mercê de tudo e de nada, à vontade de um destino que afinal não tinha nenhum plano para nós. E de um minuto para o outro temos de nos preparar para ficarmos sem roupa, sem abrigo, sem comida, esmolando, pelos cantos, sorrisos e olhares de desconhecidos que nos confirmem a pulsação, condenados a uma paisagem cheia de pormenores irrelevantes mas que com cujas pequenezas, já sabemos, que nos teremos de familiarizar.

Sabemos que voltamos à imparidade de uma meia existência. Aprendemos que, por muito fortes que nos voltemos a ter em conta, uma bicicleta não corre a uma roda, os pássaros não voam com uma asa e que, por muito que o sal não nos faça falta nenhuma, mas há nada que possamos apreciar sem ele.

Podemos até fazer bluff ou pagar para ver girar o planeta, vezes e vezes sem conta, que ele nunca nos levará ao mesmo sítio. 

E, a custo, podemos achar que já não doí e que até podemos voltar a encarar de peito o mundo, até ao momento em que uma folha se liberta de um galho seco e a sua mera gravidade nos atira ao chão.





Saturday, February 8, 2014

O meu sangue

Com as minhas dores posso eu bem. Ensaco-as, tal viola, para trás da porta e revisito-as quando tiver mesmo de ser. 

Mas não aguento a dor da mãe. Não suporto a tristeza pesada naqueles olhos azeitona absortos num amanhã vazio. Não aguento a confusão nas palavras que já se esqueceram do sentido que lhes acabaram de dar. As mãos trémulas de um tempo que se abateu sobre uma mulher linda, cedo demais, depressa demais. Preciso de mais dias, de mais anos, de empurrar a violência do que aí vem para a ficção de um sonho mau. Preciso que ela acorde a sorrir, que saiba onde está e porquê. Preciso que ela agarre a vida com mais força, ou que se agarre a mim para que a prenda eternamente a este mundo. Tenho de gritar com este Deus perverso que a tomou de ponta. Vou ameaçá-lo, vou fazê-lo desaparecer das fantasias de toda a gente. 

Não aguento a dor do pai. Acorrentado a uma vida que não escolheu e que lhe subtraiu a doçura incomensurável e a simples ousadia do poder querer. E carrega o fardo do mundo, para que as filhas nem cheguem a saber que existe. Golpes ensanguentados na cabeça como resultado de um acesso de fúria. Vejo-lhe a evasão nos olhos mudos dissiparem-se numa ideia intangível de misericórdia. 

Esta gente, este meu sangue, esta minha alma e corpo merece mais do que esta condenação que, nem a julgamento, teve direito.

Que me doa a mim. Que sovem antes o meu corpo, que me amputem os membros, um a um, se tiver de ser. Que me escolham a mim como mártir da crueza com que a vida nos diz que é assim mesmo. 
Dou-me à tortura, ao desespero, ao escuro sem fim, dou-me à morte.
Faço o que for preciso e mais o dobro.

Mas, por favor, deixem de violentar esta gente que é minha e que sou eu.

E como não tenho quem me faça à cortesia, estendo-lhes um abraço apertado esquecendo-me, para sempre, de o recolher.

Corações

Se me pedissem que representasse a forma como a vejo, seria difícil encontrar as palavras. Procuraria associar imagens às sensações para não me perder em banalidades. E os lugares comuns e as banalidades estão a um distância cósmica de tudo o que ela é.

Quando penso nela não vejo um rosto. Há uma luz branca e morna que suplanta as distracções. Vejo uma madeixa de cabelo que se estende pelo ombro e que se pousa delicadamente sobre um pedaço de peito. E a razão pela qual eu sei disto é porque só me aquieto, assiduamente, no sereno do seu colo. A sua respiração de mãe, o bater compassado do sangue a dar entrada no coração, foram alinhados para embalar os filhos. E nesta redoma, tal como fazia com a minha mãe em pequena, deixo-me adormecer, enrolando os meus dedos no seu cabelo. E neste gesto perpetuo a ligação umbilical que me faz pertencer a algo maior do que eu. 

Pede-me que olhe em frente, diz-me que o futuro não é agora e que o passado se consumiu até à última gota. Pede-me que solte o cabelo, e que me deixe navegar pelas ondas dos meus caracóis. Quero muito mergulhar os pés na areia em brasa, deixar o sol abordar a superfície do meu corpo e largar-me ao destino que o vento decidir para mim. Mas há essa luta interior. Ergo espadas e escudo e, mesmo que os músculos me falhem, sei para onde tenho de ir. Quero muito que, no meio desse caminho atribulado, surja um trilho cheio de árvores tropicais e lagoas azuis que embeveça os meus sentidos, e com esse estado de estupefacção, o meu lugar e a minha missão se manifestem à minha frente.



E, volta e meia, sou assaltada com recordações que me agridem, como socos violentos no estômago. Há uma presença imaterial que me persegue disfarçadamente. Quando não estou à espera, toca-me no ombro e segreda-me ao ouvido murmúrios de verdades com as quais afincadamente combato. 

E tão facilmente o discurso atrapalhado de uma criança me liberta em gargalhadas, como o voo solitário de pássaro nocturno à minha janela me provoca uma precisão urgente de chorar. E nada disto tem tem grande justificação.


Lá terei de deixar os dias correr, uns atrás dos outros, como as gotas de água da chuva sobre uma estrada ensombrada e deserta, na esperança de que os pedaços deste coração estilhaçado se depositem, separadamente, em cada um deles. Um dia, livrar-me-ei desse orgão doente e débil. Nesse dia, vou à loja e compro um novo. E poderei enchê-lo novamente com coisas boas.

Thursday, February 6, 2014

Às vezes é bom esticar os olhos sobre um vale a perder de vista. Traz-nos de volta à insignificância da nossa existência. Não porque não tenha significado, mas porque tem de ser o produto de tantas outras coisas que se passam à nossa volta.. 

Passamos demasiado tempo a olhar para nós próprios ou demasiado tempo a olhar para os outros. Mas as respostas não estão num ou noutro sítio. As evidências às nossas perguntas estão no sítio mais óbvio. À frente dos nossos olhos. E quando não as queremos ver, é porque temos medo. Se temos medo, não façamos perguntas. Se não fizermos perguntas é porque não nos pomos em causa. E se não nos pomos em causa, somos limitados. E se formos limitados, contentamo-nos com o que houver. Se se assim o for, estaremos a desperdiçar a única oportunidade que temos. A que a improbabilidade fez acontecer. Viver é um pequeno milagre, estamos cá e nem sabemos como. Temos tanto para aprender e tão pouco tempo para o fazer. 

O que passou, passou. Faz parte de uma verdade incontornável. O que está para vir, virá.

De que estamos à espera?