A culpa é do amor? A culpa, sim, esse
flagelo que os católicos inventaram para punir quem pecasse nessa
tentativa de "felicidade": um desrespeito por quem se cruxificou por
todos os outros. Esse sim, diz que sentiu o amor na forma mais pura,
altruísta, livre, desinteressada... será? talvez só sejamos capazes de
sentir essa forma de amor por quem temos sangue, adn, cor dos olhos e
feitio. Esse sim, dura sem muito trabalho, sem presença física, sem
contacto, até sem que precisemos muito de gostar de algém. E quando é
preciso, damos. E damos. Sem reconhecimento ou troco do investimento.
O amor romântico, esse sim é fodido. Esse sim, é egoísta. Esse sim, é enfermo. Doente, irracional, acéfalo. Porquê?
Porque nos deu trabalho. Porque tropeçámos nele, quando só queríamos ir à merceria comprar coentros para temperar o arroz. Porque contra toda a incomensurável improbabilidade que nos calhasse a nós - "E no meio de tanta gente eu encontrei você. Entre tanta gente chata sem nenhuma graça, você veio. E eu que pensava que não ia me apaixonar. Nunca mais na vida" - há um alguém que com um sorriso nos toca por debaixo da pele e com cujo olhar nos desmorona como o vento a uma piramide de cartas, e que nos faz questionar o que raio, antes disto, nos fazia levantar da cama. E aí nós sabemos, nada mais será como antes. Foda-se. É o precipício. A corda bamba. Lá se vai o marasmo da lufa lufa. O nervoso miudinho, as borboletas no estomago. A falta de apetite, ou o excesso dele. O prazer que se ganha nas mais pequenas merdinhas. A superioridade com que lidamos com as banalidades da existência humana. O peito cheio para o mundo, as costas largas. Venha de lá uma guerra!
Aí sabemos que a nossa existência não foi uma ocasionalidade ou circunstância, há um sentido para o que sempre achavamos ter de bom demais para dar. Há um esse alguém que precisa em igual medida exactamente aquilo que podemos oferecer. E o que temos para oferecer, aumenta todos os dias. Há uma chave para essa fechadura que queríamos ter fechado de vez. E a medo, abrimo-la. Vamos com tudo. Construímos coisas pequeninas e coisas grandes. Criamos a terceira entidade entre os dois, que é a comunhão de um e do outro. Limamos arestas, ajustamo-nos aos interstícios dos dois, vamos, em bicos de pés, esticando os braços e abrindo mais espaços. Estabelecemos um idioma próprio. Meias-palavras. Gestos completos. Piscadelas de olhos, trincas na orelha, palmadinhas no rabo, sinais surdos que só os dois entendemos. Perdemos o constrangimento de estar apaixonados e o medo de o assumir para o outro. Será que vai fugir? Deixa de interessar, esse amor ganha uma dimensão tal que perdemos mão nele, a sua materialização em palavras é já obra sua, não o conseguimos conter. Temos isto tudo dentro de nós que é para o outro, tem de ser dele, temos de lho dar. Porque é esse sentido de pertença, de conjunto, de paridade, de chegar a casa e tirar os sapatos, essa intimidade da pele, do corpo, da voz, do nosso nome noutra boca, da nossa figura sob outros olhos, é isso que alimenta o nosso amor. É isso que egoísticamente precisamos de receber. A nós próprios, amados por quem amamos! A irracionalidade disto? Sermos metade até sermos um.
O amor romântico, esse sim é fodido. Esse sim, é egoísta. Esse sim, é enfermo. Doente, irracional, acéfalo. Porquê?
Porque nos deu trabalho. Porque tropeçámos nele, quando só queríamos ir à merceria comprar coentros para temperar o arroz. Porque contra toda a incomensurável improbabilidade que nos calhasse a nós - "E no meio de tanta gente eu encontrei você. Entre tanta gente chata sem nenhuma graça, você veio. E eu que pensava que não ia me apaixonar. Nunca mais na vida" - há um alguém que com um sorriso nos toca por debaixo da pele e com cujo olhar nos desmorona como o vento a uma piramide de cartas, e que nos faz questionar o que raio, antes disto, nos fazia levantar da cama. E aí nós sabemos, nada mais será como antes. Foda-se. É o precipício. A corda bamba. Lá se vai o marasmo da lufa lufa. O nervoso miudinho, as borboletas no estomago. A falta de apetite, ou o excesso dele. O prazer que se ganha nas mais pequenas merdinhas. A superioridade com que lidamos com as banalidades da existência humana. O peito cheio para o mundo, as costas largas. Venha de lá uma guerra!
Aí sabemos que a nossa existência não foi uma ocasionalidade ou circunstância, há um sentido para o que sempre achavamos ter de bom demais para dar. Há um esse alguém que precisa em igual medida exactamente aquilo que podemos oferecer. E o que temos para oferecer, aumenta todos os dias. Há uma chave para essa fechadura que queríamos ter fechado de vez. E a medo, abrimo-la. Vamos com tudo. Construímos coisas pequeninas e coisas grandes. Criamos a terceira entidade entre os dois, que é a comunhão de um e do outro. Limamos arestas, ajustamo-nos aos interstícios dos dois, vamos, em bicos de pés, esticando os braços e abrindo mais espaços. Estabelecemos um idioma próprio. Meias-palavras. Gestos completos. Piscadelas de olhos, trincas na orelha, palmadinhas no rabo, sinais surdos que só os dois entendemos. Perdemos o constrangimento de estar apaixonados e o medo de o assumir para o outro. Será que vai fugir? Deixa de interessar, esse amor ganha uma dimensão tal que perdemos mão nele, a sua materialização em palavras é já obra sua, não o conseguimos conter. Temos isto tudo dentro de nós que é para o outro, tem de ser dele, temos de lho dar. Porque é esse sentido de pertença, de conjunto, de paridade, de chegar a casa e tirar os sapatos, essa intimidade da pele, do corpo, da voz, do nosso nome noutra boca, da nossa figura sob outros olhos, é isso que alimenta o nosso amor. É isso que egoísticamente precisamos de receber. A nós próprios, amados por quem amamos! A irracionalidade disto? Sermos metade até sermos um.
[Conduzo leve e solta pelos caminhos que já sei de olhos fechados. Um som rouco de duas rodas a meu lado. Há um semáforo que me faz o favor de envermelhecer, proporcionando-me um minuto e meio com a mota que ensombra a minha janela direita. Sinto um compasso descontrolado no pulso. Um capacete que se levanta e um perfume conhecido a invadir-me o habitáculo. O pescoço que se esgueira pela janela pedindo-me um beijo, que se prolonga muito para além das três cores do semáforo. Um carro atrás apita. Mas o mundo desapareceu. Despeço-me a custo, e olhando para trás, vejo pessoas sorridentes que subitamente se esqueceram da sua pressa.]
Lágrimas.
Trocam-nos as voltas, parece que a
meio do caminho, viramos no sítio errado. E agora já não há como
reencontrar o sítio para onde íamos. Revisito obssessivamente memórias à
procura do sítio onde me enganei. Tento aniquilar os instintos que me
fizeram acreditar no amor. Digo para mim que nada foi real. Nem as
palavras, nem os gestos. Terei sonhado?
O tal fazer amor começava ali, entre a janela do meu carro,
onde quatro lábios faziam prolongar duas almas retidas em dois corpos.
O foder não tem grandes requisitos. É o que é. Tira-se a roupa e faz-se o serviço.
Por muito que venha a ficar melhor, não acredito ser capaz de algum dia voltar a fazer amor.